IV - Celebrando o Culto na Liturgia Luterana
A. Rito e Cerimônia
Antes
de entrarmos em alguns detalhes, a pauta exige algumas definições. As palavras
“rito e cerimônia” têm sido usadas com certa frequência até aqui. Mas qual o
seu significado?
“Rito”
é a substância das palavras do culto, escritas numa página e faladas. O rito
sobre o qual vamos tratar se encontra tanto no Hinário Luterano quanto na
Liturgia Luterana (ex-Vol I e II). Isso quer dizer que a IELB é uma Igreja com
ritual porque possui ritos: o Sacramento do Altar, o Sacramento do Batismo, a
Absolvição, a Confirmação, o Casamento, etc. Ainda que a palavra “ritual” não
tenha uma boa reputação entre os luteranos, a mesma é extremamente adequada e
necessita de compreensão e reabilitação.
“Cerimônia”
é uma outra palavra que tem uma reputação semelhante. Cerimônia se refere às
ações da liturgia — de como os ministros se conduzem no presbitério, junto ao
altar, fazem o sinal da cruz, batizam, celebram o Sacramento... Todas essas
ações são cerimônias. Nós temos cerimonial. Ou seja, nós temos um jeito de
fazer as coisas. Cerimônia é uma necessidade. Temos cerimônias que são boas,
ruins, ou indiferentes. Mas, gostemos ou não, temos cerimônias.
A
IELB possui ritos de culto teologicamente sadios. As rubricas dos cultos e dos
ritos nos orientam para um cerimonial que é objetivo, sóbrio, limpo e claro. Tanto
a cerimônia como o rito podem ensinar, comunicar e instruir. E realmente o fazem.
A intenção de qualquer das nossas ordens de culto é a de que a cerimônia
ensine, de forma sadia e clara como o rito em si. Não podemos correr o risco de
usar cerimônias de forma impensada ou descuidadamente. Como também realizar
cerimônias pomposas e fora da realidade.
Rito e cerimônia são duas
palavras que precisamos compreender e não temer.
B. O Ministro Presidente e seus Assistentes
Com
a reforma litúrgica provocada a partir do Concílio Vaticano II, diversas
Igrejas Luteranas reestudaram a questão litúrgica e entre algumas modificações
que introduziram, se encontra uma que tem por objetivo contemplar o uso de
ministros assistentes ao lado das partes reservadas ao Ministro Presidente, ou
pastor e a congregação. Por que a mudança?
Na
época da Reforma estava em voga a missa
lecta[1] ou missa
privata que foram o padrão de culto seguido na Europa Ocidental. Era essa
missa que os Reformadores conheceram e usaram como seu modelo. A missa lecta era liderada por um
celebrante, e os responsos eram falados pela congregação, ou, em muitos casos,
por um único acólito. O culto era conduzido normalmente por um só ministro
junto ao altar. No entendimento dos Reformadores, a congregação não devia
consistir de meros espectadores. Eles encorajaram a participação do povo e
entenderam o culto como uma ação corporativa. Mas o modelo da missa lecta com a qual estavam
familiarizados, requeria um único ministro no altar e uma congregação.
A
qualidade corporativa do culto é um conceito que os Luteranos, pós Vaticano II,
tentam expandir, fazendo uso de ministros assistentes. Muitas paróquias
luteranas têm um único pastor ordenado; neste caso, o papel do ministro
assistente não deveria ficar limitado ao ministro ordenado. A maioria dessas
congregações não tem condições de utilizar essas partes designadas aos
ministros assistentes, se permanecerem limitadas a pastores como ministros assistentes.
Leigos são encorajados a assumir o papel do ministro assistente.
Nos
Estados Unidos, a LCMS, ao adotar o novo hinário o “Lutheran Worship” usa o
modelo da missa solemnis na
celebração da Eucaristia, que faz uso do diácono e do sub-diácono. O papel do
ministro assistente não é o de oferecer à congregação uma oportunidade de
“brincar de pastor”, como se isso fosse a coisa importante do culto.
O
objetivo dessa reformulação ou abertura para o uso de assistentes, não é uma
clericalização do culto, ou seja, ter cada vez mais ministros e deixar cada vez
mais de lado a congregação. Na verdade, a razão por trás do uso de ministros
assistentes, é a de que se entenda que cada ordem (alemão: Stand) na igreja tem seu ofício (Amt) a exercer.
A
congregação tem seu culto, sua liturgia, orações, louvor e ações de graças.
Ninguém pode tirar essa liturgia do povo de Deus. O ministro (pastor)
presidente tem a sua liturgia, ou culto, a render. Ele é chamado para pregar o
Evangelho, absolver e celebrar os Sacramentos. Este ministério provém do
próprio Deus, e o pastor atua como representante de Cristo no meio do povo de
Deus, quando os Sacramentos são celebrados e o Evangelho é pregado. Os
ministros assistentes reestabelecem um ministério diaconal importante.
Liturgicamente eles representam o povo. Como ministros assistentes lideram as
orações, que é a sua tarefa essencial e ainda assistem na leitura da Palavra de
Deus e na distribuição do cálice na Comunhão.
Cada
um tem uma liturgia a executar. Nenhum é completo sem o outro, assim que juntos
formam uma sinfonia de louvor a Deus.
A
questão da participação de “leigos licenciados” pelas congregações é um
desenvolvimento recente, pois até aqui era permitido aos leigos atuarem apenas
em circunstâncias especiais ou emergenciais, sob supervisão apropriada. Segundo
alguns teólogos luteranos, a celebração da Santa Ceia por leigos de forma
continuada e outros atos considerados reservados a pastores, devem ser
analisados em acordo com a nossa teologia do ministério público.
Douglas
Fusselmann em seu artigo Somente
Brincando de Igreja? — o ministério leigo e a Santa Ceia, aborda essa
questão com muita propriedade e de forma ampla. O que segue, é um resumo de seu
artigo[2],
onde são comentados seus principais argumentos.
1. “Um leigo ao
realizar todas as funções de um sacerdote... por não ter sido consagrado,
ordenado e santificado, na verdade, não está fazendo nada, mas apenas brinca de
igreja, enganando-se a si mesmo e a seus seguidores” (Lutero, 1515 - LW, Vol.
25, pp.234-235).
2. Em
circunstâncias excepcionais ou emergenciais, indivíduos qualificados podem ser chamados temporariamente para executarem, sob supervisão adequada, funções que normalmente são executadas pelos
pastores ou ministros ordenados (CTCR-LCMS, The Ministry, 1981. p.35).
3. Em 1989 a
Lutheran Church Missouri Synod — LCMS, em sua 57a CN, sancionou
oficialmente o “ministério leigo”, permitindo que leigos licenciados exercessem
funções do ministério público em congregações que, de outra forma, ficariam
privadas das mesmas por um longo período de tempo.
4. Com base na
afirmação de Lutero, Douglas Fusselmann pergunta: “Podem as funções do
ministério público ser genuinamente executadas à parte do ofício? O ministério
leigo distribui o verdadeiro Sacramento ou apenas pão e vinho? A eficácia da
Santa Ceia de alguma forma, depende do ofício do ministério público?”
A visão Cristológica do Ofício
Luteranos,
desde o princípio confessam decididamente uma compreensão cristológica do
ministério público:
1. O ofício do
Ministério Público é o ofício de Cristo na igreja de Cristo.
2. Indivíduos são
permitidos e até ordenados a exercer o ofício, mas não são donos do mesmo.
3. Um ministro
ordenado pode apenas agir como representante de Cristo.
4. Ministros
ordenados não representam sua própria pessoa, mas a pessoa de Cristo (Lc
10.16).
5. Mas o ministro
ordenado não substitui, não assume o lugar de um Cristo in absentia (visão reformada), mas age em nome de um Cristo
eminentemente presente (Mt 28.20).
6. Cristo está
realmente presente na congregação por meio do ofício que ele mesmo ordenou.
7. Congregações,
por isso, são obrigadas a dar corpo a essa presença, instituindo e ordenando
ministros.
8. Deus mesmo lida
conosco na igreja por meio do ministério (Martin Chemnitz, Ministry, Word and Sacrament, p.29).
9. Quando reis
ouvem a Palavra e veem a administração dos Sacramentos, deveriam colocar suas
coroas e cetros aos pés de Cristo e dizer: É Deus que está presente, está
falando e está agindo aqui” (Lutero, 1540, sermão sobre Jo 4.)
10.A tentação de
pensar que aquele que está administrando a Santa Ceia, não passa de um mero
sacerdote, para Lutero esse é um pensamento não cristão. (Lutero, 1540, sermão
sobre Jo 4.)
11.Por causa do
chamado da igreja, os ministros não representam a si mesmos, mas o próprio
Cristo. “Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim” (Lc 10.16).
12.Quando ministros
oferecem a Palavra de Cristo ou os Sacramentos, o fazem em lugar e em nome de
Cristo.
13.Mas somente
aqueles atos ministeriais que são ordenados por Cristo podem ser executados
ministerialmente. Ou seja, nem tudo que o ministro chamado e ordenado faz é
instrumental.
14.Nada tem caráter
sacramental à parte do que foi ordenado ou instituído por Cristo. E todos os atos
ordenados devem ser feitos em conformidade com a sua instituição.
O ofício e a eficácia sacramental:
1. A diferença
entre pastores e leigos não é uma questão de inferioridade ou superioridade
pessoal ou espiritual.
2. A vocação ao
ministério não é elitizante, não confere atributos de superioridade de qualquer
ordem do ministro sobre leigos.
3. Cristo veio e
continua vindo no ofício — não como tirano, e sim, como servo (Lc 22.27).
4. Homens e
mulheres leigos são objetos de serviço continuado de Cristo por meio do ministério
público.
5. O ofício, no
entanto, não existe à parte da igreja. Leigos apenas precisam prover os
elementos para a presença de Cristo em seu meio — estabelecendo o ministério,
chamando ministros!
6. A distinção
entre leigos e ministros, então, é simplesmente uma questão de
instrumentalidade — um leigo agirá de acordo com a sua própria pessoa; um
ministro age em acordo com o ofício — como instrumento da presença de Cristo.
7. Um leigo pode
executar atos eclesiásticos, mas em tais casos ele/ela sozinhos são os atores;
quando um ministro executa esses mesmos atos no ofício, o próprio Cristo é o
ator.
8. Essa distinção
em nenhum lugar é mais claramente compreendida do que na ABSOLVIÇÃO. O pastor,
em virtude do ofício, pode anunciar uma absolvição “operativa-indicativa” na
primeira pessoa: “eu vos perdoo todos os pecados...” (CTCR-LCMS, Lutheran Worship Altar Book, p.34).
9. Cristo está aqui
pessoalmente se dirigindo ao penitente por meio do ministro como instrumento.
Se um leigo fosse fazê-lo, mesmo na primeira pessoa, a absolvição viria do
indivíduo, e não do unigênito Filho do Pai.
10.O leigo, homem
ou mulher, só pode anunciar o perdão divino na terceira pessoa do singular.
11.A diferença está
no ofício (C.F. Walther, Church and
Ministry, p.193).
12.É significante
que, liturgicamente, admite-se que leigos façam a leitura do Salmo e da
Primeira Leitura. Já a Segunda Leitura, recomenda-se que seja feita por um
diácono. Porém, o Santo Evangelho sempre deverá ser lido pelo ministro chamado
e ordenado como pastor da congregação ou, pelo menos, por um outro ministro
ordenado.
13.As Palavras da
Instituição são ditas como sendo eficazes porque são as palavras do Cristo
poderoso e presente, ditas por Cristo pela boca do seu ministro (Martin
Chemnitz, Examination of the Council of
Trent, Vol.2, pp.228-229).
14.Pronunciar as
Palavras da Instituição na terceira pessoa do singular: “este é o verdadeiro
corpo de Cristo” é considerado contrário à instituição bem como infrutífero.
15.Um leigo, de
acordo com a doutrina e teologia bíblica do chamado, não pode empregar a
primeira pessoa do singular na absolvição e/ou consagração, pois o “eu absolvo”
e o “isto é meu corpo” se aplicariam a sua própria pessoa e ao seu próprio
corpo, e não à pessoa e ao corpo de Cristo.
16.Somente um
ministro, por virtude do ofício, pode falar as palavras da instituição de
acordo com a ordem de Cristo e, portanto, somente ele pode consagrar
genuinamente a Santa Ceia na primeira pessoa.
17.O ofício faz a
diferença.
Lutero estava certo:
1. O ofício é
expressão concreta da presença de Cristo na Congregação.
2. Não pode haver
um ministério sobre Jesus Cristo,
pois só existe o ministério de Jesus Cristo.
3. Pelo ofício,
Cristo está pessoalmente agindo entre seu povo.
4. À parte do
ofício do ministério, atos eclesiásticos são executados não por Cristo, e sim,
por indivíduos.
5. Historicamente,
as funções do ofício do ministério foram executadas exclusivamente por pessoas
chamadas ou colocadas no ofício pastoral.
6. Qualquer
tentativa de celebrar a Eucaristia à parte do ofício do ministério público é
mais do que um desvio da “boa ordem”. É ilícita, inválida e ineficaz.
7. Como o termo
“ministro leigo” é confuso, e até contraditório, a questão do ministro leigo e
a Santa Ceia não se resolve tão fácil e rapidamente.
8. Se o ministro
leigo está investido do ofício por causa da sua indicação ou instalação por
parte da congregação, então Cristo está verdadeiramente presente e ativo no
ofício e na consagração da Santa Ceia realizada pelo ministro leigo.
9. Se, por outro
lado, ministros leigos não estão investidos do ministério — se apenas executam
as funções do ministério à parte do ofício, então eles estão fazendo em seu
próprio nome.
10.A discussão
interminável de “chamado x ordenado”, “preparado x não preparado
teologicamente”, “funções exclusivas x funções distintivas do ministério” pode
prontamente ser abandonada, pois o ministério leigo só pode ser adequadamente
compreendido e definido em acordo com a sua relação com o ministério público.
11.Híbridos
teológicos criados pelo ser humano facilmente podem dar margem à confusão e
distorção, muitas vezes obscurecendo a verdade.
12.Tais confusões
ou dúvidas, no entanto, são intoleráveis e indesculpáveis no que concerne à
Santa Ceia e à Absolvição.
13.O povo de Deus
jamais deveria ter dúvidas sobre a eficácia dos Sacramentos quando usados e celebrados
em seu meio.
14.Isso não quer
dizer que todos os leigos devem ser rechaçados dos altares e afastados de suas
congregações.
15.Um enfoque menos
drástico, está na ordem do dia: porque não conferir aberta e publicamente o
ofício do ministério aos leigos que estão atuando “no ministério da Palavra e
dos Sacramentos” em nossas congregações?[3]
[1] Missa Lecta é uma missa falada ou uma
missa sem música, celebrada por um sacerdote e um acólito. Também chamada Missa Privata. Existiam também outras
missas: a Missa Cantata e a Missa
Solemnis. A primeira é uma forma simplificada da Missa Solemnis, sem diácono ou sub-diácono. Na Missa Solemnis, o diácono cantava o Evangelho, e um sub-diácono a
epístola. Lutheran Cyclopedia, Concordia
Publishing House, St. Louis, 1975, p.549.
[2] Douglas D.
Fusselmann é pastor da Igreja Luterana Nosso Salvador em Valentine, Nebraska,
EUA. Seu artigo “Only Playing Church? -
The Lay Minister and The Lord’s Supper, originalmente foi apresentado como
um tópico de abertura no Segundo Simpósio Anual de Teologia no Concordia
Seminary de St. Louis, Missouri, em 6 de maio de 1992. Posteriormente foi
publicado em LOGIA - A Journal of Lutheran Theology. Vol. III, N0 1,
1994. pp.43-49. (Esse artigo foi traduzido para o português pelo Rev. Horst
Kuchenbecker).
[3]Observamos que
Fusselman em seu artigo está discutindo a situação na LCMS, que reconhece leigos
atuando em funções pastorais de forma continuada em congregações não servidas
por pastores ordenados.
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